Já havia muitos anos que trabalhavam. Por certo já
não conseguiam mais lembrar quando haviam começado. O trabalho era árduo e
extenuante. Diariamente quase sem descanso, não havia ócio. Havia o horário do
almoço e o horário do sono. Afinal sem eles o trabalho seria impossível. Mas
não trabalhar era impensável. Seu patrão? Eles próprios. Se te assustas com
essa resposta peço teus motivos. Não há com o que se assustar. Afinal ao longo
de toda a história da raça humana, esse bicho que é o homem, ou pelo menos a
maioria deles, serviu à sua servidão como se servisse a si mesmo. Se enxergares
o progresso da história como o progresso da liberdade peço que observes com
mais atenção. Vê e me diz. Diz-me se o que vê não é o progresso da liberdade,
mas antes o progresso da capacidade de obedecer. De obedecer sem ter quem
ordene. Bom, se liberdade é servidão voluntária, eis a história da raça humana.
A história da progressiva aniquilação do ócio em função do mandamento que
ninguém deu para realizar os feitos que ninguém pediu. Parece insano, e é. Mas
há quem defenda esse desenvolvimento. Há quem enxergue no abismo infinito dos
desenvolvimentos sem sentido o fim. A razão, o objetivo. Tomado por uma crença
fervorosa de que toda essa servidão nos encaminhava para o que mais desejávamos,
mais que tudo, e também por uma crença de que não haveria mal em otimizar o
processo, foi criada uma máquina. Pensou ele com seus botões: “Andamos em rumo
à felicidade, é isso o que todos desejamos. Se fazemos tudo isso, todo esse
esforço, não é o caso de que o façamos por mal. Por mal ninguém age. Todos agem
por bem.” Então ordenado por seu imperativo criou a máquina que catalisaria o
processo da felicidade humana. As barreiras nacionais há muito já havia caído,
o estado também não resistira em nenhuma parte. Deus já estava mais que morto e
enterrado. Da religião não havia sequer resquício. Mas quando se criou a
Happiness-o-matic-5500, também o capital e as empresas não resistiram. Os
burros de carga que são os homens largaram toda sua servidão habitual. Largaram
uma por outra. Seu próprio inventor morreu na esperança de atingir seu objetivo
apertando um parafuso aos 123 anos de idade. Não foi capaz de ver seu objetivo
realizado. Agora, o rebanho do animal humano era todo um. A máquina se encontrava
cada vez maior no centro do mundo. Todos em todas as partes a serviam direta ou
indiretamente. Ela mesma foi se aprimorando diante da servidão que todos
rendiam a ela. Seu projeto inicial consistia num plano de gerenciamento de
tarefas para a humanidade. Partindo do princípio racionalíssimo de que os
homens, todos e cada um, trabalhavam por sua felicidade, bastava que o trabalho
fosse o mais eficiente e o mais organizado possível. Assim o seu produto logo
seria alcançado. Todos os povos, todas as culturas, todos os homens, todos os
números. Não havia uma ovelha que não pastasse nesse rebanho, um camelo que não
carregasse suas cargas até a máquina. Por milênios e milênios ela foi sendo
alimentada pelo homem. Na beleza de seu projeto havia um sentimento de devir.
Talvez o único fato que salvaria a humanidade. Os homens cada vez trabalhavam
mais e cada vez mais serviam à máquina. O horário de almoço e o de sono já
estavam o máximo reduzidos. A comida eram apenas pílulas. O sono um piscar de
olhos. O que a máquina demandava? A construção de outras máquinas. A criação de
outras tecnologias. A extração dos recursos da terra. A consecução de cada vez
mais energia. E tudo isso bem embalado levado a seu poço onde ela tragava e
engolia. Toda humanidade em romaria. Indo ao centro a partir da periferia. De
mão em mão um produto, a ser despejado no poço da eterna felicidade. O
sentimento de devir que ela incluía serviu apenas para que a eficiência do
trabalho fosse maximizada. Cada vez mais aquilo que ela incluía em si por meio
do trabalho do homem mais a tornava grande eficaz e capaz de mandar o homem
trabalhar mais. Até que chegou um dia. Um dia aterrorizador. O maior medo que
já houve sobre a face da terra. A notícia se espalhou rapidamente. Todos
cuidavam para que a máquina não soubesse. Ela não podia ser informada. Depois
de quase dez milênios de trabalho incessante, de suor, de laboriosa labuta - o
objetivo, não esse não havia sido alcançado. Era pior. A fonte havia secado.
Agora não havia mais o que produzir. Não havia nada que não tivesse sido
inventado. A privada-geladeira-mp3-computador já tinha passado da versão 6000
há muitos milênios. E todas as versões foram devoradas pela máquina. A
televisão-telefone-bicicleta-avião-trem-coleira de cachorro já tinha passado
pelos últimos retoques há pelo menos 3000 anos, e também havia sido tragada
pela máquina. A hidrelétrica-solar-eólica de fusão/fissão movida a gás natural
não tinha mais como ser aprimorada havia séculos. Aquele fatídico dia, o dia do
maior temor da humanidade, era o dia em que não havia mais trabalho. Pois o
mais terrível e impensável tinha acontecido. Foi inventada a derradeira e
última invenção humana, a última máquina que podia suprir a necessidade da
máquina: o tamagochi que se alimentava, e se cuidava sozinho, com baterias
recarregáveis. Entretanto, por mais incrível que pareça, um pouco de hombridade
havia restado ao homem. Após reunião de toda a humanidade, todos resolveram que
contariam a verdade à máquina. Contariam que eram incapazes de realizar o seu
objetivo. Que eram indignos dela, da felicidade que ela prometia, e entregariam
a ela sua última demanda, o tamagochi-auto-care-4000 como ficou conhecido.
Todos unidos em volta da máquina deram-se as mãos, urraram um grito de
desculpas e atiraram para seu interior o tamagochi. “Seja o que a máquina
quiser”, alguém sussurrou nesse momento. Assim que o tamagochi se perdeu no
vazio do abismo do interior da máquina, antes mesmo que os homens pudessem
explicar a ela o ocorrido, de seu interior obscuro bradou uma voz que ressoava
grave como um trovão na mais torrencial tempestade. A máquina falou pela
primeira vez, e com sua voz grave disse: “Não há mais como eu possa ajudar a
vocês para que alcancem sua felicidade. A excelência do trabalho a que vocês
alcançaram sob minha tutela e recomendação foi a máxima possível. Acabou. Não
há mais o que eu possa fazer por vocês.” Todos choraram desesperados. O dia do
juízo final havia chegado, e cada um sentia em seu íntimo que tinha seu lugar
no inferno. Foi quando de súbito a máquina começou a reluzir e brilhar. Todos
se afastaram temerosos. Uma luz intensa emanava da máquina. Logo ela mesma era
invisível e se enxergava apenas um ofuscante clarão. Foi então que a máquina
disse. Não há mais trabalho a fazer, eu não posso ajudar, busquem a felicidade
por si mesmos. E nesse clarão intensíssimo a máquina foi engolida e
desapareceu. Deixando os homens desamparados, sem Estado, sem Capital, sem
Religião, e sem nenhuma tarefa a cumprir para os próximos infindáveis dias. Será
que a máquina foi bem projetada?
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