domingo, 6 de abril de 2014

COISA BOA



Coisa boa se faz
pra não querer parar 

coisa cobjetivo
para quando alcançar

consequências para uma filosofia da história

se a história tem fim
coisa boa não é
ou da cabeça é ruim
ou doente do pé

consequências para uma filosofia da religião

e se hápocalipse
mundo não é legal
mundo bão não se acaba
em juízo final

consequências para uma filosofia moral

só pode ser bom
o que não se quer terminar
boa ação, brincadeira
vida boa é jogar

consequências para uma filosofia política

e se quer cumprir metas
bom governo não é
governé tristeza
bom é bicho de pé 

consequências para uma metafísica

Se mundé coisa boa
outra coisa não é
que não brincadeira
deus brincando é que é

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Banqueiros aracnofóbicos: Da incompatibilidade entre filosofia e educação tradicional


0. Introdução
Nosso objetivo com este trabalho é defender uma incompatibilidade entre o paradigma educacional vigente, a educação dita tradicional, e o que se pode considerar como uma boa aula de filosofia. Para tal, apresentaremos brevemente o que consideramos como essencial a um modelo tradicional de educação, clarificando aí quais sejam os papéis tanto de professores como de alunos. Em seguida, apresentaremos uma concepção de filosofia que consideramos a mais adequada. Após isso, mostraremos como esta concepção do que seja filosofia veta o modelo tradicional de educação como uma possibilidade para seu ensino. Por fim, esboçaremos uma breve conclusão, na qual possamos redefinir, nesse novo horizonte, as figuras do professor e do aluno. 


1. Educação Tradicional
 Pensando a partir de nossa realidade atual investigaremos brevemente quais os papéis de professores e alunos. Comumente, consideramos como professores, em primeiro lugar, aqueles que se encontram a frente de turmas, em salas de aula. Aqueles que tendo uma formação adequada, adquirem certo conhecimento, o qual deve ser transmitido aos alunos; que os observam de suas carteiras. O objetivo dessa transmissão é que os receptores sejam capazes de replicar por si mesmos as informações transmitidas pelo emissor. O professor seria o transmissor, e os alunos os receptores. O modo para verificar a eficiência desta transmissão seriam os testes e provas. A partir de perguntas elaboradas pelo emissor, os receptores seriam capazes de replicar as informações obtidas no espaço oportuno. Tão melhor a réplica, tão melhor avaliados são os receptores. Em nosso sistema, um bom aluno é um aluno que sabe repetir o que lhe disseram.   
 Diz-se comumente que o professor é aquele que ensina. Já o aluno seria aquele que é ensinado, ou seja, aquele que aprende o que o professor tem a ensinar. De acordo com o exposto no parágrafo acima, a concepção vigente de aprendizado é equivalente à memorização. Tal modelo de educação Paulo Freire denominou bancária. O aluno seria um banco, no qual o professor depositaria o conhecimento como quem deposita dinheiro. Assim temos bem definidos o espaço de professor e aluno. Professor é o que detém o conhecimento, e aluno é aquele que é carente dele. Por isso, o professor é o que detém o direito a expressão, emissão de conteúdos, e os alunos são restritos nesse direito, tendo antes o dever da recepção. A emissão dos alunos é condicionada tanto espaço-temporalmente quanto qualitativamente. O tempo para expressá-la é a hora da avaliação. O espaço é no local indicado, com um número preciso de linhas para a resposta. Seu conteúdo qualitativo, de preferência o mesmo que disse o professor. 
 Há ainda um reforço para que alunos condicionem a validade de sua expressão à proximidade que ela guarda com o discurso do professor. Tal recurso é o erro. A invenção do erro tem papel fundamental na educação tradicional. Ele é a ferramenta que permite ao professor regular as expressões dos alunos, enquadrando-as em uma das condições que apresentamos. Fale no tempo adequado, apenas quando o professor deixa. No local adequado, converse no recreio, não na sala de aula. Com o conteúdo adequado, resposta diferente da esperada é nota zero.  O erro cumpre o papel de estigmatizar o aluno que age de forma diferente da esperada pelo professor. Progressivamente o erro passa a ser um critério válido de avaliação para os próprios alunos entre si. Estes passam a considerar os indivíduos que erram muito como burros, sejam eles seus colegas de classe ou eles mesmos. A educação tradicional ao criar o erro, instaura ao mesmo tempo, e no mesmo movimento, um regime que funciona como se houvesse apenas uma verdade absoluta. Inquestionável. Cujo possuidor não é o aluno, mas apenas o professor.  


2. Uma concepção de Filosofia
Passaremos agora, seguindo nosso roteiro apresentado na introdução, a expor uma determinada concepção do que seja a filosofia. Inicialmente é interessante notar que a filosofia é essencialmente uma prática. Não parece adequado chamar pelo nome de filósofo aquele que meramente reproduz o pensamento alheio. Mesmo que este detenha em si como conhecimento toda a produção filosófica, ainda aí, não seria adequado dar-lhe o nome de filósofo. Daí depreendemos, também, que a filosofia tem algo que ver com o pensamento, afinal é esse o produto dos filósofos. Mas talvez seja também esse o produto dos cientistas e dos artistas. Devemos, portanto, buscar uma maior especificidade do que seja essa atividade do pensamento que é a filosofia. 
Utilizaremos-nos aqui da concepção de filosofia apresentada por Deleuze-Guattari em seu livro intitulado “O que é a filosofia?”. Neste livro é dada uma breve definição da filosofia e que envolve em si todo um contexto, inclusive pré-filosófico, mesmo social e histórico, do ambiente no qual consideramos ter surgido a filosofia, isto é na Grécia clássica. Não é, entretanto, nosso interesse tratar aqui desse aspecto da gestação do conceito de filosofia. Ateremo-nos apenas no que ele guarda de propriamente filosófico, que é o que nos interessa nesta empreitada. 
Diz-nos este livro, que a filosofia é a arte de criar conceitos. Assim, para que expliquemos isso brevemente nos deteremos em dois conceitos fundamentais para esta compreensão. Falaremos do conceito de “conceito”, e do conceito de “plano de imanência”, sem o qual, o “conceito” não pode subsistir. 
Temos assim, que o conceito é um produto do pensamento, oriundo inicialmente de algo extra-conceitual. Não fosse assim toda realidade já seria conceito, e não caberia aos filósofos criá-los. Entretanto, uma vez criado, um conceito não subsiste sozinho. Reproduz-se se diferenciando. Explico. É que para Deleuze-Guattari o conceito só pode ser definido pelo conjunto de relações que possui com os demais conceitos que a ele são conaturais em dado pensamento. Nunca se pensa um conceito apenas. Pensa-se sempre um plano de imanência. Tal plano seria uma grande teia na qual os conceitos residiriam como seus nós. Saberíamos qual nó é qual apenas quando conferíssemos por quais fios eles se interligam com outros nós, quais fios se intersectam, e de que modo, quais por cima, quais por baixo. Assim, cada filósofo poderia ser compreendido como uma aranha fiandeira.  O filósofo seria o responsável pela confecção desta teia, que é o plano de imanência, e em seus nós encontraríamos seu produto mais precioso, os conceitos.  


3. Aranhas e Banqueiros
Como dissemos, após ter apresentado uma concepção do que seja a filosofia e do que seja a educação tradicional, cabe agora a nós estabelecer de que modo podem se relacionar. Normalmente na concepção tradicional de educação a filosofia é reduzida à sua história. Ou seja, os professores transmitem aos alunos o nome dos filósofos, suas datas de nascimento, algumas de suas ideias, as menos perigosas de preferência, e paramos por aí.  Nessa concepção a filosofia acaba surgindo como um ramo da história. História essa ainda concebida de um modo tradicional que talvez não agrade nem mesmo aos historiadores. 
Mas se pensamos a filosofia como atividade criativa, de imediato ela entra em conflito com a educação tradicional. A filosofia, concebida como criação de conceitos só pode ser bem compreendida pelos alunos se estes participarem de seu movimento. Evidentemente, conhecer planos de imanência produzidos pelos demais filósofos pode ser interessante. Nesse momento, então, a filosofia se distingue da história da filosofia. Mesmo que se trate dos filósofos passados o enfoque é diferente. Presta-se atenção no que dizem, a que problemas respondem, como se articulam suas falas, até que ponto funcionam, e por que são boas ou más soluções para o que se propõem. 
É tarefa do professor de filosofia, tendo dado matéria prima a seus alunos, colocar-lhes obstáculos ao pensamento. Problemas. O problema é o extra-filosófico que estimula a produção do conceito. É para resolver problemas que pensamos. Ninguém se esmera em algo que pode ser tão trabalhoso se não há nenhuma urgência envolvida, nenhum desejo. Vemos aí onde o corpo encontra a mente, desejo e pensamento se tornam um. 
Na educação tradicional jamais cabe ao aluno pensar por si mesmo. Mas é justamente isso que a filosofia, assim compreendida, demanda dos alunos. Demanda que abandonem sua posição de meros receptores e tornem-se também emissores. Produtores de suas próprias falas. 
Cai aí, nesse mesmo instante a função do erro, tão caro à manutenção da ordem numa escola tradicional. Ora, se crio meu próprio discurso, quem melhor que eu para julgá-lo? Ademais, se todos são capazes de criar pensamento, que critério universalmente aplicável teríamos para escolher qual o melhor? A verdade absoluta é destronada pela filosofia. Não há mais espaço para um ambiente de rebanho no qual há aquele que fala e aqueles que escutam; disposição espacial que encarna e encena autoridade. 
A disposição original da filosofia é o círculo, é a praça. A autoridade é pulverizada, ou antes, não há autoridade última. O ambiente da filosofia é um ambiente de diálogo de conversação. Não se deve apenas ouvir, deve-se falar, retrucar, concordar e discordar. 


4. Conclusão
Podemos então retomar nosso percurso. Percebemos que a educação tradicional estrutura-se em um modelo que confere papéis rígidos ao professor e aos alunos. O primeiro é o emissor, os demais os receptores. O erro regula essa relação mantendo a fixidez das posições. A educação tradicional é um ambiente de constrição discursiva.
A seguir vimos uma concepção de filosofia que a compreende como uma atividade criativa. A filosofia como criação de conceitos coloca-se diretamente como uma prática de liberdade discursiva. Afinal para praticá-la é preciso produzir seu próprio discurso. O ambiente político que a filosofia, assim concebida, instaura na educação é, portanto, um ambiente horizontal, de posições fluidas, em que ora se é emissor, ora receptor, ora produtor, ora comentador. A filosofia instaura a política da amizade e do diálogo, por oposição à política da autoridade e da escuta do ambiente tradicional.
Concluímos por fim, que o papel do professor de filosofia é triplo. Fornecer matéria prima para que os alunos produzam seus conceitos, história conceitual da filosofia. Fornecer a pulga que devem posicionar atrás de suas orelhas, apresentar-lhes problemas. Por fim, dialogar com eles, e propiciar que floresça entre eles, o diálogo sobre a produção conceitual de cada um. Seu papel é mais trabalhoso do que o do educador tradicional, e incompatível com o dele, é preciso falar, mas também ouvir. O papel do aluno não é apenas ouvir, e reproduzir. Seu papel é também ouvir, não só ao professor, mas aos demais alunos. Criar seu discurso, pensar. Também é seu papel expressá-lo, e debater sobre ele. Nossa hipótese se confirma. Essa concepção de filosofia não cabe num modelo tradicional de educação. 

5. Referências:

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968.  
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a Filosofia? Tradução Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Editora 34, 2010 

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Dona Hora


Ela era terrível. Era mesmo insuportável. Não sei como vivíamos daquele jeito. Como éramos capazes de aturar aquela velha. Meu deus! Tão velha! Tão chata! Mas graças a deus, já passou. E acho que não vai mais voltar a acontecer. Que velha? Vocês não sabem de quem eu estou falando? Vocês tem sorte, isso sim, sorte.  Mas a curiosidade é uma virtude, mesmo quando nos conduz até a chatice. Vou lhes responder.

O nome dela era Dona Hora. Eu não sei se ela tinha um outro nome, um nome de verdade. Tudo o que eu sei é que desde que nasci ela tinha esse nome, e fazia o que sempre fez até onde as gerações mais antigas da cidade podiam se lembrar. Bom, por mais estranho que seja esse nome era muito adequado àquela velha.

Dona Hora vivia no centro de nossa cidade. É uma cidade pequena, de interior. Não temos essas geringonças da cidade grande. Levamos uma vida pacata, calma. Dona Hora vivia no centro de nossa cidade, no meio da praça central. Próximo à venda, ao templo, à escola e ao botequim.

Como eu estava dizendo, esse nome era muito bom para expressar o que ela era, ou seja, o que ela fazia. Dona hora empunhava uma grande bengala de madeira, cuja ponta que tocava o chão era metálica. Com seu ritmo infatigável para alguém da sua idade, ela caminhava em círculos pela praça central vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, trezentos e sessenta e cinco dias por ano. Exceto nos anos bissextos, nesses, ela caminhava trezentos e sessenta e seis dias.

Vejam bem, não se trata de força de expressão, figura de linguagem. Era literalmente isso. Sem hipérboles. Ela caminhava, formando um círculo, ao redor da praça central, uma volta por minuto. Nesse momento vocês podem me acusar de obsessivo ou vagabundo. Teria eu cronometrado o tempo que a velha levava? Não, não precisei.

Vale ressaltar que os primeiros, os obsessivos, eram todos os que viviam na cidade naquela época. Já os vagabundos, pobres deles, eram praticamente repelidos da cidade pela Dona Hora. Mas vocês ainda querem saber como eu sabia que ela dava uma volta por minuto?

É simples, ela mesma cronometrava seu tempo. A cada passo que dava a maldita velha batia com a ponta metálica da sua maldita bengala no chão, e após isso gritava com sua voz de taquara rachada o número correspondente, que variava, de um a cinquenta e nove. No sessenta ela simplesmente dizia o horário correspondente. Algo como, meio dia e trinta e oito minutos.
Dá pra entender por que ela era chamada de Dona Hora?

O mais bizarro é que aquela velha não comia. Ela enchia o saco de todo mundo. Ela não comia, ela era velha, e ela não morria. Dizem que exercício faz bem e ela andava o dia todo, todo dia. Mas isso já é demais.
Bom, como eu disse a nossa cidade era o lar dos obsessivos, e, portanto, o terror dos vagabundos. Não bastasse ela assinalar em voz alta todos os minutos da cidade, ela controlava os compromissos das pessoas.

Ela ficava bem no meio da praça central, a cidade era pequena. Todos os que trabalhavam passavam por lá. Todos os que compravam mantimentos na venda passavam por lá. Os que iam à escola, os que iam ao templo, os que iam ao botequim.

Só não passaria por ela quem não saísse de casa, e esses não existiam. E ela dizia, está na hora da missa. O que essas crianças estão fazendo na praça? Vocês tem que ir para a escola agora! Isso já não é mais hora de estar no botequim! Por que vocês ainda não abriram a venda, já são sete da manhã!

Meu deus, que velha chata!

Tudo bem, eu tenho que confessar que ela não gritava sempre os segundos. Mas eu sei que ela os contava, todos. As sessenta batidas da bengala no chão nunca paravam, o anúncio dos novos minutos também não.  

Agora vocês querem saber onde ela está? Por que a cidade está cheia de bons e livres vagabundos, e os obsessivos não tem mais lugar ente nós?

É simples, vou lhes contar o que aconteceu. Todos estavam tão obcecados com seus compromissos, com as cobranças da velha que conhecia a todos pelo nome. A cidade era pequena, mas por deus, como uma velha tem uma memória tão boa?  Ninguém aguentava mais, no fim todos já estavam internalizando aquilo e cobrando-se uns aos outros. Era como se a chatice da velha transbordasse. Como se dentro de cada um dos nossos corações fosse possível ouvir o tiquetaquear da Dona Hora.

Então, durante um ritual, em que todos estavam presentes, pontualmente, é claro, surgiu uma discussão.  Na verdade a discussão foi justamente por não ter alguém pontual. O último a chegar foi reprimido quase em coro pelos participantes do ritual. Nisso ele teve um colapso nervoso.  Bendito, bendito seja o colapso nervoso, a rebelião do corpo daquele homem. Ele gritou dizendo que sabia que estava atrasado, que Dona Hora tinha avisado a ele. Que ele fazia côcô em horários programados todos os dias!
Que ele só podia fazer amor com a companheira dele quando a Dona Hora gritasse: Vinte e duas horas e quarenta e três minutos! Meu deus, dizia ele, que vida terrível é essa!? Subitamente ao invés de ser novamente repreendido alguém mais gritou, eu também não aguento mais isso, e de repente mais alguém, e mais alguém até que todos perceberam que ninguém mais aguentava aquela maldita velha!

De súbito percebemos que deveríamos parar com aquela palhaçada. Não as reclamações no templo. Mas com o controle que Dona Hora passou a ter em nossas vidas, apontando nossas faltas, falhas e atrasos, o controle que ela tinha tão forte sobre nós que determinava os nossos movimentos peristálticos.

Até que alguém emergiu na multidão irada contra Dona Hora propondo uma excelente solução. Devíamos nos acalmar e escutá-lo, para que saíssemos do templo na hora certa, sem chamar a atenção da nossa inimiga.

Combinamos que no dia seguinte todos sairiam de casa uma hora mais cedo. Todos, sem exceção. A escola abriria uma hora mais cedo, todas as crianças iriam uma hora mais cedo, e sairiam uma hora mais cedo. Dona Hora estaria atrasada pela primeira vez!

Todos voltaram do templo normalmente, passando por ela. Alguns a cumprimentando mais do que o normal. Outros, rosnando para ela. O importante é que ela não suspeitasse de nada. E ela não suspeitou.  

No dia seguinte, a venda que abria às seis e meia, abriu as cinco e meia, não havia nascido nem o sol. A velha se assustou, não entendeu o que poderia ter acontecido, mas seguiu seu rumo.

Depois, às seis as crianças passavam para ir à escola. Ela devia estar louca! Nada mais fazia sentido na cabeça daquela velha.

Quando passávamos para trabalhar ela esboçou uma pergunta, sobre o horário, por que estávamos saindo mais cedo. Todos respondiam que estavam na hora certa.

Ela não sabia o que pensar, ficou alterada, nervosa, começou a andar mais rápido, as batidas de bengala mudaram seu ritmo habitual. Estavam mais próximas umas das outras. Foi então que ela percebeu que havia perdido a conta.

Nesse momento, uma criança parou a seu lado e perguntou: Dona Hora, que horas são?
Ela não aguentou, e antes que pudesse responder saiu correndo. Ela sabia que não sabia mais que horas eram, e que com isso tinha perdido o seu poder sobre nós. Velha filha da puta!

É essa a história crianças, de como adquirimos nossa liberdade e inventamos o horário de verão. 

domingo, 28 de julho de 2013

Eu pedi uma história, ele fez:



Por Joaquim Francisco Bertuol Porto,

E então fizeram aquilo. Haviam inventado o começo de uma era de simuladores de realidade virtual, que iriam a longo prazo substituir toda e qualquer relação física humana. Tudo começou nos anos 2700, quando a virada do século impulsionou a indústria de entretenimento globalizado em tempo real. Já se havia especulações da criação de um mundo virtual a parte do nosso real, em enormes servidores espalhados pelo mundo, onde com um simples traje de realidade virtual poderia-se viver uma vida virtual e completamente ao seu gosto. No início parecia inofensivo.
Depois disso o mundo virtual cresceu demais. As pessoas não demoraram para descobrir como fazer dinheiro com o novo videogame e o que era uma diversão começou a se tornar emprego para alguns pobres coitados. Depois, com a crise de não se ter empregados por conta do dinheiro que se fazia no jogo, a migração para aquele novo sistema de negócios era evidente.
Foi então que tudo foi por água a abaixo, com a nova poltrona FlexCo, a única que tinha cateteres posicionados e um suplemento de soro, para você poder ficar horas no jogo. "Isso só pode ser mentira! As pessoas não comprariam isso!" - você me perguntaria. Bem, não é a primeira vez que ideias rídiculas enchem a mente das massas na nossa historia não é mesmo? Enfim, eu vi tudo isso acontecer, na realidade me sinto culpado por isso tudo. Eu, Romanov Chruaesky, inventor do chamado mundo virtual, a AlterTerra como é conhecida atualmente. se alguém um dia voltar pra nossa querida terra real, leia este bilhete e desligue tudo, eu sou o último homem a ir para a realidade virtual, e não sei se um dia alguém voltará. Adeus e olá, amigo.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Happiness-o-matic-5500



Já havia muitos anos que trabalhavam. Por certo já não conseguiam mais lembrar quando haviam começado. O trabalho era árduo e extenuante. Diariamente quase sem descanso, não havia ócio. Havia o horário do almoço e o horário do sono. Afinal sem eles o trabalho seria impossível. Mas não trabalhar era impensável. Seu patrão? Eles próprios. Se te assustas com essa resposta peço teus motivos. Não há com o que se assustar. Afinal ao longo de toda a história da raça humana, esse bicho que é o homem, ou pelo menos a maioria deles, serviu à sua servidão como se servisse a si mesmo. Se enxergares o progresso da história como o progresso da liberdade peço que observes com mais atenção. Vê e me diz. Diz-me se o que vê não é o progresso da liberdade, mas antes o progresso da capacidade de obedecer. De obedecer sem ter quem ordene. Bom, se liberdade é servidão voluntária, eis a história da raça humana. A história da progressiva aniquilação do ócio em função do mandamento que ninguém deu para realizar os feitos que ninguém pediu. Parece insano, e é. Mas há quem defenda esse desenvolvimento. Há quem enxergue no abismo infinito dos desenvolvimentos sem sentido o fim. A razão, o objetivo. Tomado por uma crença fervorosa de que toda essa servidão nos encaminhava para o que mais desejávamos, mais que tudo, e também por uma crença de que não haveria mal em otimizar o processo, foi criada uma máquina. Pensou ele com seus botões: “Andamos em rumo à felicidade, é isso o que todos desejamos. Se fazemos tudo isso, todo esse esforço, não é o caso de que o façamos por mal. Por mal ninguém age. Todos agem por bem.” Então ordenado por seu imperativo criou a máquina que catalisaria o processo da felicidade humana. As barreiras nacionais há muito já havia caído, o estado também não resistira em nenhuma parte. Deus já estava mais que morto e enterrado. Da religião não havia sequer resquício. Mas quando se criou a Happiness-o-matic-5500, também o capital e as empresas não resistiram. Os burros de carga que são os homens largaram toda sua servidão habitual. Largaram uma por outra. Seu próprio inventor morreu na esperança de atingir seu objetivo apertando um parafuso aos 123 anos de idade. Não foi capaz de ver seu objetivo realizado. Agora, o rebanho do animal humano era todo um. A máquina se encontrava cada vez maior no centro do mundo. Todos em todas as partes a serviam direta ou indiretamente. Ela mesma foi se aprimorando diante da servidão que todos rendiam a ela. Seu projeto inicial consistia num plano de gerenciamento de tarefas para a humanidade. Partindo do princípio racionalíssimo de que os homens, todos e cada um, trabalhavam por sua felicidade, bastava que o trabalho fosse o mais eficiente e o mais organizado possível. Assim o seu produto logo seria alcançado. Todos os povos, todas as culturas, todos os homens, todos os números. Não havia uma ovelha que não pastasse nesse rebanho, um camelo que não carregasse suas cargas até a máquina. Por milênios e milênios ela foi sendo alimentada pelo homem. Na beleza de seu projeto havia um sentimento de devir. Talvez o único fato que salvaria a humanidade. Os homens cada vez trabalhavam mais e cada vez mais serviam à máquina. O horário de almoço e o de sono já estavam o máximo reduzidos. A comida eram apenas pílulas. O sono um piscar de olhos. O que a máquina demandava? A construção de outras máquinas. A criação de outras tecnologias. A extração dos recursos da terra. A consecução de cada vez mais energia. E tudo isso bem embalado levado a seu poço onde ela tragava e engolia. Toda humanidade em romaria. Indo ao centro a partir da periferia. De mão em mão um produto, a ser despejado no poço da eterna felicidade. O sentimento de devir que ela incluía serviu apenas para que a eficiência do trabalho fosse maximizada. Cada vez mais aquilo que ela incluía em si por meio do trabalho do homem mais a tornava grande eficaz e capaz de mandar o homem trabalhar mais. Até que chegou um dia. Um dia aterrorizador. O maior medo que já houve sobre a face da terra. A notícia se espalhou rapidamente. Todos cuidavam para que a máquina não soubesse. Ela não podia ser informada. Depois de quase dez milênios de trabalho incessante, de suor, de laboriosa labuta - o objetivo, não esse não havia sido alcançado. Era pior. A fonte havia secado. Agora não havia mais o que produzir. Não havia nada que não tivesse sido inventado. A privada-geladeira-mp3-computador já tinha passado da versão 6000 há muitos milênios. E todas as versões foram devoradas pela máquina. A televisão-telefone-bicicleta-avião-trem-coleira de cachorro já tinha passado pelos últimos retoques há pelo menos 3000 anos, e também havia sido tragada pela máquina. A hidrelétrica-solar-eólica de fusão/fissão movida a gás natural não tinha mais como ser aprimorada havia séculos. Aquele fatídico dia, o dia do maior temor da humanidade, era o dia em que não havia mais trabalho. Pois o mais terrível e impensável tinha acontecido. Foi inventada a derradeira e última invenção humana, a última máquina que podia suprir a necessidade da máquina: o tamagochi que se alimentava, e se cuidava sozinho, com baterias recarregáveis. Entretanto, por mais incrível que pareça, um pouco de hombridade havia restado ao homem. Após reunião de toda a humanidade, todos resolveram que contariam a verdade à máquina. Contariam que eram incapazes de realizar o seu objetivo. Que eram indignos dela, da felicidade que ela prometia, e entregariam a ela sua última demanda, o tamagochi-auto-care-4000 como ficou conhecido. Todos unidos em volta da máquina deram-se as mãos, urraram um grito de desculpas e atiraram para seu interior o tamagochi. “Seja o que a máquina quiser”, alguém sussurrou nesse momento. Assim que o tamagochi se perdeu no vazio do abismo do interior da máquina, antes mesmo que os homens pudessem explicar a ela o ocorrido, de seu interior obscuro bradou uma voz que ressoava grave como um trovão na mais torrencial tempestade. A máquina falou pela primeira vez, e com sua voz grave disse: “Não há mais como eu possa ajudar a vocês para que alcancem sua felicidade. A excelência do trabalho a que vocês alcançaram sob minha tutela e recomendação foi a máxima possível. Acabou. Não há mais o que eu possa fazer por vocês.” Todos choraram desesperados. O dia do juízo final havia chegado, e cada um sentia em seu íntimo que tinha seu lugar no inferno. Foi quando de súbito a máquina começou a reluzir e brilhar. Todos se afastaram temerosos. Uma luz intensa emanava da máquina. Logo ela mesma era invisível e se enxergava apenas um ofuscante clarão. Foi então que a máquina disse. Não há mais trabalho a fazer, eu não posso ajudar, busquem a felicidade por si mesmos. E nesse clarão intensíssimo a máquina foi engolida e desapareceu. Deixando os homens desamparados, sem Estado, sem Capital, sem Religião, e sem nenhuma tarefa a cumprir para os próximos infindáveis dias. Será que a máquina foi bem projetada?

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Conhecer

Conhecer é ser aranha
ser aranha é só tecer
ter na alma, na entranha
o estranho gosto de coser

não com seda nem barbante
a matéria dessa teia é o conceito
Descartes me perdoe e tambérm Kant,
e seu ponto de apio não é o sujeito

domingo, 30 de setembro de 2012

C. A.

Letras são desenhos com sentido
só pra quem ficou sentado
sem ter consentido
obrigado ao terror caligráfico
tão mais terrível
quanto mais se gosta de jogar bola.

Terror da alfabetização na escola