quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Dona Hora


Ela era terrível. Era mesmo insuportável. Não sei como vivíamos daquele jeito. Como éramos capazes de aturar aquela velha. Meu deus! Tão velha! Tão chata! Mas graças a deus, já passou. E acho que não vai mais voltar a acontecer. Que velha? Vocês não sabem de quem eu estou falando? Vocês tem sorte, isso sim, sorte.  Mas a curiosidade é uma virtude, mesmo quando nos conduz até a chatice. Vou lhes responder.

O nome dela era Dona Hora. Eu não sei se ela tinha um outro nome, um nome de verdade. Tudo o que eu sei é que desde que nasci ela tinha esse nome, e fazia o que sempre fez até onde as gerações mais antigas da cidade podiam se lembrar. Bom, por mais estranho que seja esse nome era muito adequado àquela velha.

Dona Hora vivia no centro de nossa cidade. É uma cidade pequena, de interior. Não temos essas geringonças da cidade grande. Levamos uma vida pacata, calma. Dona Hora vivia no centro de nossa cidade, no meio da praça central. Próximo à venda, ao templo, à escola e ao botequim.

Como eu estava dizendo, esse nome era muito bom para expressar o que ela era, ou seja, o que ela fazia. Dona hora empunhava uma grande bengala de madeira, cuja ponta que tocava o chão era metálica. Com seu ritmo infatigável para alguém da sua idade, ela caminhava em círculos pela praça central vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, trezentos e sessenta e cinco dias por ano. Exceto nos anos bissextos, nesses, ela caminhava trezentos e sessenta e seis dias.

Vejam bem, não se trata de força de expressão, figura de linguagem. Era literalmente isso. Sem hipérboles. Ela caminhava, formando um círculo, ao redor da praça central, uma volta por minuto. Nesse momento vocês podem me acusar de obsessivo ou vagabundo. Teria eu cronometrado o tempo que a velha levava? Não, não precisei.

Vale ressaltar que os primeiros, os obsessivos, eram todos os que viviam na cidade naquela época. Já os vagabundos, pobres deles, eram praticamente repelidos da cidade pela Dona Hora. Mas vocês ainda querem saber como eu sabia que ela dava uma volta por minuto?

É simples, ela mesma cronometrava seu tempo. A cada passo que dava a maldita velha batia com a ponta metálica da sua maldita bengala no chão, e após isso gritava com sua voz de taquara rachada o número correspondente, que variava, de um a cinquenta e nove. No sessenta ela simplesmente dizia o horário correspondente. Algo como, meio dia e trinta e oito minutos.
Dá pra entender por que ela era chamada de Dona Hora?

O mais bizarro é que aquela velha não comia. Ela enchia o saco de todo mundo. Ela não comia, ela era velha, e ela não morria. Dizem que exercício faz bem e ela andava o dia todo, todo dia. Mas isso já é demais.
Bom, como eu disse a nossa cidade era o lar dos obsessivos, e, portanto, o terror dos vagabundos. Não bastasse ela assinalar em voz alta todos os minutos da cidade, ela controlava os compromissos das pessoas.

Ela ficava bem no meio da praça central, a cidade era pequena. Todos os que trabalhavam passavam por lá. Todos os que compravam mantimentos na venda passavam por lá. Os que iam à escola, os que iam ao templo, os que iam ao botequim.

Só não passaria por ela quem não saísse de casa, e esses não existiam. E ela dizia, está na hora da missa. O que essas crianças estão fazendo na praça? Vocês tem que ir para a escola agora! Isso já não é mais hora de estar no botequim! Por que vocês ainda não abriram a venda, já são sete da manhã!

Meu deus, que velha chata!

Tudo bem, eu tenho que confessar que ela não gritava sempre os segundos. Mas eu sei que ela os contava, todos. As sessenta batidas da bengala no chão nunca paravam, o anúncio dos novos minutos também não.  

Agora vocês querem saber onde ela está? Por que a cidade está cheia de bons e livres vagabundos, e os obsessivos não tem mais lugar ente nós?

É simples, vou lhes contar o que aconteceu. Todos estavam tão obcecados com seus compromissos, com as cobranças da velha que conhecia a todos pelo nome. A cidade era pequena, mas por deus, como uma velha tem uma memória tão boa?  Ninguém aguentava mais, no fim todos já estavam internalizando aquilo e cobrando-se uns aos outros. Era como se a chatice da velha transbordasse. Como se dentro de cada um dos nossos corações fosse possível ouvir o tiquetaquear da Dona Hora.

Então, durante um ritual, em que todos estavam presentes, pontualmente, é claro, surgiu uma discussão.  Na verdade a discussão foi justamente por não ter alguém pontual. O último a chegar foi reprimido quase em coro pelos participantes do ritual. Nisso ele teve um colapso nervoso.  Bendito, bendito seja o colapso nervoso, a rebelião do corpo daquele homem. Ele gritou dizendo que sabia que estava atrasado, que Dona Hora tinha avisado a ele. Que ele fazia côcô em horários programados todos os dias!
Que ele só podia fazer amor com a companheira dele quando a Dona Hora gritasse: Vinte e duas horas e quarenta e três minutos! Meu deus, dizia ele, que vida terrível é essa!? Subitamente ao invés de ser novamente repreendido alguém mais gritou, eu também não aguento mais isso, e de repente mais alguém, e mais alguém até que todos perceberam que ninguém mais aguentava aquela maldita velha!

De súbito percebemos que deveríamos parar com aquela palhaçada. Não as reclamações no templo. Mas com o controle que Dona Hora passou a ter em nossas vidas, apontando nossas faltas, falhas e atrasos, o controle que ela tinha tão forte sobre nós que determinava os nossos movimentos peristálticos.

Até que alguém emergiu na multidão irada contra Dona Hora propondo uma excelente solução. Devíamos nos acalmar e escutá-lo, para que saíssemos do templo na hora certa, sem chamar a atenção da nossa inimiga.

Combinamos que no dia seguinte todos sairiam de casa uma hora mais cedo. Todos, sem exceção. A escola abriria uma hora mais cedo, todas as crianças iriam uma hora mais cedo, e sairiam uma hora mais cedo. Dona Hora estaria atrasada pela primeira vez!

Todos voltaram do templo normalmente, passando por ela. Alguns a cumprimentando mais do que o normal. Outros, rosnando para ela. O importante é que ela não suspeitasse de nada. E ela não suspeitou.  

No dia seguinte, a venda que abria às seis e meia, abriu as cinco e meia, não havia nascido nem o sol. A velha se assustou, não entendeu o que poderia ter acontecido, mas seguiu seu rumo.

Depois, às seis as crianças passavam para ir à escola. Ela devia estar louca! Nada mais fazia sentido na cabeça daquela velha.

Quando passávamos para trabalhar ela esboçou uma pergunta, sobre o horário, por que estávamos saindo mais cedo. Todos respondiam que estavam na hora certa.

Ela não sabia o que pensar, ficou alterada, nervosa, começou a andar mais rápido, as batidas de bengala mudaram seu ritmo habitual. Estavam mais próximas umas das outras. Foi então que ela percebeu que havia perdido a conta.

Nesse momento, uma criança parou a seu lado e perguntou: Dona Hora, que horas são?
Ela não aguentou, e antes que pudesse responder saiu correndo. Ela sabia que não sabia mais que horas eram, e que com isso tinha perdido o seu poder sobre nós. Velha filha da puta!

É essa a história crianças, de como adquirimos nossa liberdade e inventamos o horário de verão. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário