quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Banqueiros aracnofóbicos: Da incompatibilidade entre filosofia e educação tradicional


0. Introdução
Nosso objetivo com este trabalho é defender uma incompatibilidade entre o paradigma educacional vigente, a educação dita tradicional, e o que se pode considerar como uma boa aula de filosofia. Para tal, apresentaremos brevemente o que consideramos como essencial a um modelo tradicional de educação, clarificando aí quais sejam os papéis tanto de professores como de alunos. Em seguida, apresentaremos uma concepção de filosofia que consideramos a mais adequada. Após isso, mostraremos como esta concepção do que seja filosofia veta o modelo tradicional de educação como uma possibilidade para seu ensino. Por fim, esboçaremos uma breve conclusão, na qual possamos redefinir, nesse novo horizonte, as figuras do professor e do aluno. 


1. Educação Tradicional
 Pensando a partir de nossa realidade atual investigaremos brevemente quais os papéis de professores e alunos. Comumente, consideramos como professores, em primeiro lugar, aqueles que se encontram a frente de turmas, em salas de aula. Aqueles que tendo uma formação adequada, adquirem certo conhecimento, o qual deve ser transmitido aos alunos; que os observam de suas carteiras. O objetivo dessa transmissão é que os receptores sejam capazes de replicar por si mesmos as informações transmitidas pelo emissor. O professor seria o transmissor, e os alunos os receptores. O modo para verificar a eficiência desta transmissão seriam os testes e provas. A partir de perguntas elaboradas pelo emissor, os receptores seriam capazes de replicar as informações obtidas no espaço oportuno. Tão melhor a réplica, tão melhor avaliados são os receptores. Em nosso sistema, um bom aluno é um aluno que sabe repetir o que lhe disseram.   
 Diz-se comumente que o professor é aquele que ensina. Já o aluno seria aquele que é ensinado, ou seja, aquele que aprende o que o professor tem a ensinar. De acordo com o exposto no parágrafo acima, a concepção vigente de aprendizado é equivalente à memorização. Tal modelo de educação Paulo Freire denominou bancária. O aluno seria um banco, no qual o professor depositaria o conhecimento como quem deposita dinheiro. Assim temos bem definidos o espaço de professor e aluno. Professor é o que detém o conhecimento, e aluno é aquele que é carente dele. Por isso, o professor é o que detém o direito a expressão, emissão de conteúdos, e os alunos são restritos nesse direito, tendo antes o dever da recepção. A emissão dos alunos é condicionada tanto espaço-temporalmente quanto qualitativamente. O tempo para expressá-la é a hora da avaliação. O espaço é no local indicado, com um número preciso de linhas para a resposta. Seu conteúdo qualitativo, de preferência o mesmo que disse o professor. 
 Há ainda um reforço para que alunos condicionem a validade de sua expressão à proximidade que ela guarda com o discurso do professor. Tal recurso é o erro. A invenção do erro tem papel fundamental na educação tradicional. Ele é a ferramenta que permite ao professor regular as expressões dos alunos, enquadrando-as em uma das condições que apresentamos. Fale no tempo adequado, apenas quando o professor deixa. No local adequado, converse no recreio, não na sala de aula. Com o conteúdo adequado, resposta diferente da esperada é nota zero.  O erro cumpre o papel de estigmatizar o aluno que age de forma diferente da esperada pelo professor. Progressivamente o erro passa a ser um critério válido de avaliação para os próprios alunos entre si. Estes passam a considerar os indivíduos que erram muito como burros, sejam eles seus colegas de classe ou eles mesmos. A educação tradicional ao criar o erro, instaura ao mesmo tempo, e no mesmo movimento, um regime que funciona como se houvesse apenas uma verdade absoluta. Inquestionável. Cujo possuidor não é o aluno, mas apenas o professor.  


2. Uma concepção de Filosofia
Passaremos agora, seguindo nosso roteiro apresentado na introdução, a expor uma determinada concepção do que seja a filosofia. Inicialmente é interessante notar que a filosofia é essencialmente uma prática. Não parece adequado chamar pelo nome de filósofo aquele que meramente reproduz o pensamento alheio. Mesmo que este detenha em si como conhecimento toda a produção filosófica, ainda aí, não seria adequado dar-lhe o nome de filósofo. Daí depreendemos, também, que a filosofia tem algo que ver com o pensamento, afinal é esse o produto dos filósofos. Mas talvez seja também esse o produto dos cientistas e dos artistas. Devemos, portanto, buscar uma maior especificidade do que seja essa atividade do pensamento que é a filosofia. 
Utilizaremos-nos aqui da concepção de filosofia apresentada por Deleuze-Guattari em seu livro intitulado “O que é a filosofia?”. Neste livro é dada uma breve definição da filosofia e que envolve em si todo um contexto, inclusive pré-filosófico, mesmo social e histórico, do ambiente no qual consideramos ter surgido a filosofia, isto é na Grécia clássica. Não é, entretanto, nosso interesse tratar aqui desse aspecto da gestação do conceito de filosofia. Ateremo-nos apenas no que ele guarda de propriamente filosófico, que é o que nos interessa nesta empreitada. 
Diz-nos este livro, que a filosofia é a arte de criar conceitos. Assim, para que expliquemos isso brevemente nos deteremos em dois conceitos fundamentais para esta compreensão. Falaremos do conceito de “conceito”, e do conceito de “plano de imanência”, sem o qual, o “conceito” não pode subsistir. 
Temos assim, que o conceito é um produto do pensamento, oriundo inicialmente de algo extra-conceitual. Não fosse assim toda realidade já seria conceito, e não caberia aos filósofos criá-los. Entretanto, uma vez criado, um conceito não subsiste sozinho. Reproduz-se se diferenciando. Explico. É que para Deleuze-Guattari o conceito só pode ser definido pelo conjunto de relações que possui com os demais conceitos que a ele são conaturais em dado pensamento. Nunca se pensa um conceito apenas. Pensa-se sempre um plano de imanência. Tal plano seria uma grande teia na qual os conceitos residiriam como seus nós. Saberíamos qual nó é qual apenas quando conferíssemos por quais fios eles se interligam com outros nós, quais fios se intersectam, e de que modo, quais por cima, quais por baixo. Assim, cada filósofo poderia ser compreendido como uma aranha fiandeira.  O filósofo seria o responsável pela confecção desta teia, que é o plano de imanência, e em seus nós encontraríamos seu produto mais precioso, os conceitos.  


3. Aranhas e Banqueiros
Como dissemos, após ter apresentado uma concepção do que seja a filosofia e do que seja a educação tradicional, cabe agora a nós estabelecer de que modo podem se relacionar. Normalmente na concepção tradicional de educação a filosofia é reduzida à sua história. Ou seja, os professores transmitem aos alunos o nome dos filósofos, suas datas de nascimento, algumas de suas ideias, as menos perigosas de preferência, e paramos por aí.  Nessa concepção a filosofia acaba surgindo como um ramo da história. História essa ainda concebida de um modo tradicional que talvez não agrade nem mesmo aos historiadores. 
Mas se pensamos a filosofia como atividade criativa, de imediato ela entra em conflito com a educação tradicional. A filosofia, concebida como criação de conceitos só pode ser bem compreendida pelos alunos se estes participarem de seu movimento. Evidentemente, conhecer planos de imanência produzidos pelos demais filósofos pode ser interessante. Nesse momento, então, a filosofia se distingue da história da filosofia. Mesmo que se trate dos filósofos passados o enfoque é diferente. Presta-se atenção no que dizem, a que problemas respondem, como se articulam suas falas, até que ponto funcionam, e por que são boas ou más soluções para o que se propõem. 
É tarefa do professor de filosofia, tendo dado matéria prima a seus alunos, colocar-lhes obstáculos ao pensamento. Problemas. O problema é o extra-filosófico que estimula a produção do conceito. É para resolver problemas que pensamos. Ninguém se esmera em algo que pode ser tão trabalhoso se não há nenhuma urgência envolvida, nenhum desejo. Vemos aí onde o corpo encontra a mente, desejo e pensamento se tornam um. 
Na educação tradicional jamais cabe ao aluno pensar por si mesmo. Mas é justamente isso que a filosofia, assim compreendida, demanda dos alunos. Demanda que abandonem sua posição de meros receptores e tornem-se também emissores. Produtores de suas próprias falas. 
Cai aí, nesse mesmo instante a função do erro, tão caro à manutenção da ordem numa escola tradicional. Ora, se crio meu próprio discurso, quem melhor que eu para julgá-lo? Ademais, se todos são capazes de criar pensamento, que critério universalmente aplicável teríamos para escolher qual o melhor? A verdade absoluta é destronada pela filosofia. Não há mais espaço para um ambiente de rebanho no qual há aquele que fala e aqueles que escutam; disposição espacial que encarna e encena autoridade. 
A disposição original da filosofia é o círculo, é a praça. A autoridade é pulverizada, ou antes, não há autoridade última. O ambiente da filosofia é um ambiente de diálogo de conversação. Não se deve apenas ouvir, deve-se falar, retrucar, concordar e discordar. 


4. Conclusão
Podemos então retomar nosso percurso. Percebemos que a educação tradicional estrutura-se em um modelo que confere papéis rígidos ao professor e aos alunos. O primeiro é o emissor, os demais os receptores. O erro regula essa relação mantendo a fixidez das posições. A educação tradicional é um ambiente de constrição discursiva.
A seguir vimos uma concepção de filosofia que a compreende como uma atividade criativa. A filosofia como criação de conceitos coloca-se diretamente como uma prática de liberdade discursiva. Afinal para praticá-la é preciso produzir seu próprio discurso. O ambiente político que a filosofia, assim concebida, instaura na educação é, portanto, um ambiente horizontal, de posições fluidas, em que ora se é emissor, ora receptor, ora produtor, ora comentador. A filosofia instaura a política da amizade e do diálogo, por oposição à política da autoridade e da escuta do ambiente tradicional.
Concluímos por fim, que o papel do professor de filosofia é triplo. Fornecer matéria prima para que os alunos produzam seus conceitos, história conceitual da filosofia. Fornecer a pulga que devem posicionar atrás de suas orelhas, apresentar-lhes problemas. Por fim, dialogar com eles, e propiciar que floresça entre eles, o diálogo sobre a produção conceitual de cada um. Seu papel é mais trabalhoso do que o do educador tradicional, e incompatível com o dele, é preciso falar, mas também ouvir. O papel do aluno não é apenas ouvir, e reproduzir. Seu papel é também ouvir, não só ao professor, mas aos demais alunos. Criar seu discurso, pensar. Também é seu papel expressá-lo, e debater sobre ele. Nossa hipótese se confirma. Essa concepção de filosofia não cabe num modelo tradicional de educação. 

5. Referências:

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968.  
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a Filosofia? Tradução Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Editora 34, 2010 

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